Nesse post, irei comentar a recente
decisão do STF sobre o princípio da insignificância. Mas, antes disso, que tal a
gente relembrar algumas questões fundamentais sobre este princípio?
1. Qual
a natureza jurídica do princípio da insignificância?
Trata-se de uma causa de exclusão da
tipicidade. Como se sabe, a tipicidade penal é constituída pela tipicidade
formal e material. Com a incidência da insignificância, ocorre tão somente a
tipicidade formal do fato (juízo de adequação entre o fato e o modelo de crime
descrito na lei). Inexistente, portanto, a tipicidade material, consistente na
lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico.
2.
Qual a finalidade do princípio da insignificância?
Realizar uma interpretação restritiva da
lei penal. É vetor interpretativo do tipo penal. Segundo Cléber Masson, o
princípio da insignificância destina-se a diminuir a intervenção do Direito Penal,
não podendo em hipótese alguma ampliá-la.
3. Qual
a relação do princípio da insignificância com outros princípios do Direito
Penal?
Tem relação direta com a princípio da isonomia, na
medida em que visa corrigir irracionalidades e promover a igualdade material,
superando a pretensão de igualdade meramente formal.
Por outro lado, a insignificância retira
fundamento do princípio da
lesividade, na medida em que implica numa avaliação qualitativa (quanto
a natureza do bem jurídico) e quantitativa (quanto a extensão da lesão ao bem
jurídico). Do ponto de vista quantitativo (extensão da lesão), o princípio da lesividade exclui a criminalização primária
ou secundária de lesões irrelevantes de bens jurídicos. Nessa medida, o
princípio da lesividade é a expressão positiva do princípio da insignificância
em Direito Penal.
A insignificância tem relação
direta ainda com o princípio
da intervenção mínima. A intervenção mínima, dessa forma, estatui
o postulado da
necessidade no direito penal, e fundamenta
o princípio da insignificância como expressão
de desnecessidade de intervenção.
Por fim, o princípio da
proporcionalidade/razoabilidade fundamenta o princípio da
insignificância, na medida em que para a sua aplicação é analisada a
proporcionalidade em sentido estrito realizando-se um juízo de sopesamento
entre a gravidade da conduta praticada e a severidade da reação que o
ordenamento jurídico imporá ao autor do fato punível.
4. Qual a diferença entre o princípio da insignificância e o
princípio da adequação social?
A adequação
social incidirá sobre hipóteses nas quais a conduta praticada pelo sujeito,
embora possa adequar-se à tipicidade formal e, eventualmente, até gerar lesão
relevante a um bem jurídico protegido pela norma penal, será considerada
materialmente atípica por ser inerente ao convívio social, podendo, inclusive,
se traduzir em conduta aceitável ou fomentada. A insignificância, entretanto,
guarda correlação com a inexpressividade de uma lesão a bem jurídico.
Enquanto,
assim, a adequação social decorre da aceitabilidade ou do fomento da conduta, a
insignificância decorre da falta de justificativa para se recorrer ao exercício
do poder punitivo, posto desproporcional ao caso concreto, embora o fato não
seja socialmente fomentado nem faça parte do convívio ordinário da sociedade
6. A insignificância pode ser incluída como
critério de imputação objetiva?
Alguns autores modernos, como Juarez
Tavarez, vêm trabalhando a insignificância também como um critério de imputação
objetiva, no âmbito da ausência de criação ou de aumento de risco a
insignificância da lesão jurídica. Nesse caso, estuda-se a aplicação do
princípio da insignificância acerca da contribuição causal para o resultado. A
imputação, portanto, será excluída pela ausência de dominabilidade do processo causal
por parte do sujeito, a qual será apreciada ex
ante por seu aspecto físico de intervenção nos fatos.
5. Quais
são os requisitos para aplicação desse princípio?
Segundo Cléber Masson, é possível se falar
em requisitos objetivos e subjetivos para aplicação desse princípio. Os
primeiros são relacionados aos fatos, enquanto estes últimos são relacionados
ao agente e à vítima.
Conforme jurisprudência do STF, são
requisitos objetivos para aplicação do princípio da insignificância os
seguintes:
a) mínima ofensividade da conduta do
agente;
b) nenhuma periculosidade social da ação;
c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade
do comportamento; e
d) inexpressividade da lesão jurídica
provocada.
A doutrina critica a tautologia desses
vetores de aplicação.
Por outro lado, os requisitos subjetivos
para aplicação do princípio da insignificância estão relacionados a:
a) reincidência;
Há corrente aceitando e inadmitindo a
aplicação da insignificância a agente reincidente.
Os que admitem a aplicação afirmam que a
tipicidade exclui a tipicidade do fato, e a reincidência (agravante genérica) é
utilizada somente na dosimetria da pena.
O STF já admitiu a aplicação ao
reincidente genérico, excluindo a aplicação ao reincidente específico (HC
114.723/MG – 26/08/2014).
b) habitualidade delitiva
Segundo Masson, o criminoso habitual é
aquele que faz da prática de delitos o seu meio de vida. A aplicação da
insignificância nesse caso tornaria a lei inócua se tolerada a reiteração do
mesmo crime, tornando-se um autêntico incentivo ao descumprimento do Direito
Penal.
Entretanto, o STF já admitiu a aplicação
da insignificância a uma situação de habitualidade criminosa, num caso de furto
famélico, ou seja, praticado para saciar a fome do agente ou de pessoa ligada
por laços de parentesco ou de amizade (HC 141.440 – 14/08/2018).
c) crimes cometidos por militares;
Para o STF, é vedada a utilização do
princípio da insignificância nos crimes cometidos por militares, em razão da
elevada reprovabilidade da conduta, da autoridade e da hierarquia que regulam a
atuação castrense.
d) condições da vítima
Para se aplicar o princípio da insignificância,
é preciso analisar a importância do objeto material para a vítima, levando-se
em consideração a sua condição econômica, o valor sentimental do bem, como
também as circunstâncias e o resultado do crime. Ex: roubo de bicicleta velha e
cheia de defeitos de um servente de pedreiro pobre, que a usa para ir
trabalhar.
6.
Quais crimes não admitem a aplicação do princípio da insignificância?
Os entendimentos jurisprudenciais sobre a maioria
dos crimes para os quais se negava a aplicação do princípio da insignificância vem
sendo flexibilizados ao longo do tempo. Vamos tratar sobre a aplicabilidade
desse princípio.
·
Não se aplica aos crimes de roubo e cometidos com violência e grave ameaça,
dada a maior reprovabilidade;
Não se aplica aos crimes contra a Administração Pública – o STF e
STJ já admitiram a aplicação do instituto em situações extremas;
· Também inaplicável, em regra, à Lei de Drogas, pois são
crimes de perigo abstrato – mas o STF já admitiu a aplicação no caso do art. 28
da LD;
· O STF e STJ tem entendimento pacífico acerca da
aplicabilidade da insignificância para os crimes de descaminho e crimes tributários federais,
exceto quando o tributo ultrapassa R$ 20.000,00 quando deixa de ser
insignificante, pois consistem em quantia que pode ser perseguida pela Fazenda Pública
na cobrança via execução fiscal. Aliás, sobre o tema, recente e importante
julgado do STJ:
Não
pode ser aplicado para fins de incidência do princípio da insignificância nos
crimes tributários estaduais o parâmetro de R$ 20.000,00 (vinte mil reais),
estabelecido no art. 20 da Lei 10.522/2002, devendo ser observada a lei
estadual vigente em razão da autonomia do ente federativo.STJ. 5ª Turma.
AgRg-HC 549.428-PA. Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 19/05/2020.
· Não se aplica, em regra, ao crime de contrabando, em
face da natureza proibida da mercadoria importada ou exportada, embora o STJ já
tenha admitido, excepcionalmente, a aplicação do princípio no caso de
importação proibida de pequena quantidade de medicamento para uso próprio (EDcl
no AgRg no REsp 1.708.371/PR 0 24/04/2018).
·
Não se aplica, em regra, aos crimes ambientais, em
face da natureza difusa e da relevância do bem jurídico protegido, reservado às
futuras gerações. No entanto, os tribunais superiores já aplicaram esse
princípio quanto ao crime do art. 34, caput,
da Lei 9.605/98 (art. 34. Pescar em
período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão
competente”).
·
Não se aplica aos crimes contra a fé pública, cujo bem tutelado é a
credibilidade depositada nos documentos, nos sinais e símbolos empregados nas
relações indispensáveis à vida em sociedade.
·
Não se aplica aos crimes de violência doméstica ou familiar contra a mulher.
7. Qual
o teor da última decisão do STF?
Extrai-se do Informativo 973 do STF o
seguinte julgado:
É possível aplicar o princípio da insignificância para o furto de
mercadorias avaliadas em R$ 29,15, mesmo que o a subtração tenha ocorrido
durante o período de repouso noturno e mesmo que o agente seja reincidente. STF. 2ª Turma. HC 181389 AgR/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes,
julgado em 14/4/2020 (Info 973).
Não custa lembrar que, em regra,
o STF e o STJ afastam a aplicação do princípio da insignificância aos acusados
reincidentes ou de habitualidade delitiva comprovada.
Vale ressaltar, no entanto, que esses
tribunais já decidiram que a reincidência não impede, por si só, que o juiz da
causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso
concreto (STF. Plenário. HC 123108/MG, HC 123533/SP e HC 123734/MG, Rel. Min.
Roberto Barroso, julgados em 3/8/2015; STJ. 5ª Turma EDcl-AgRg-AREsp 1.631.639-
SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 19/05/2020)
Dessa forma, de acordo com a
situação apresentada no caso concreto, é possível, sim, aplicar o princípio da
insignificância mesmo para réus reincidentes.